terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Reprise

Poucas pessoas entendem bem essa minha mania de reprise. Assisto a um filme e, se gosto, vou duas, três vezes, no cinema. Se leio o livro, e se me deleita, vira livro de cabeceira, vai sendo devorado, até por anos, em alguns casos. As páginas, amareladas. As pontas da capa, um pouco gastas. Às vezes, um rabisco aparece no trecho mais interessante. Uma cena te chama mais a atenção e decoram-se os diálogos do trecho. Uma música me marca e, como a ouço tanto, gravo sua letra como se fosse um hino pessoal, muito meu, que vou cantando sem pensar ao longo do dia. Mesmo que não seja um primor de cantor, claro. O disco, ouvido até mesmo pela madrugada afora, fura mesmo. Isso quando havia discos (Agora é " Ouvi tanto que deu PT no meu mp4, no meu Ipod"). 

É certo que você quer voltar a bela sensação de completude proporcionada pela primeira vez com o livro, o filme, a música. Quando você encontra com alguém que leu esses livros, que viu esses filmes, que escutou as músicas, como que nos irmanamos na ideia de que compartilhamos um evento único, um crime impune. Buscamos no olhar do outro um cúmplice desse raio de felicidade efêmera. 

Tantas outras coisas podem ter reprise. Isso acaba sendo até mesmo a maneira como nos apresentamos ao outro, como uma ponte, um acesso por meio de algo em comum. Principalmente na falta de assunto. Primeiro encontro de um casal: se é um bom encontro, sempre será marcado por essas coincidências nas reprises que, nesse caso, viram pretexto para outra reprise (Um segundo encontro, talvez?).

Esse gosto pela reprise também é difícil, se contamos para alguém que não dá o devido peso à mesma experiência. Aí, é como um pai que dá seu brinquedo favorito de infância, guardado a sete chaves, para o filho futuro. Quando este o vê, pega e o deixa de lado nos primeiros instantes, sem um lampejo de interesse, o ingrato. No fim, nós, os amantes da reprise, achamos todos loucos ou ingratos os que não valorizam a obsessão do momento. Também há aqueles que acham essa coisa de ver de novo, várias vezes, algo estranho, uma loucura ou pura perda de tempo. Afinal, não é possível gostar de algo tanto assim. Será?

Censuram-me com frequência por falar empolgado das coisas que me fascinam. Mas ultimamente tenho ficado mais calado sobre essas reprises, as quais comento somente com quem me tolera ou curte essa pegada. Assim, não amolo mais ninguém. Mas, com isso, perde-se também a oportunidade de se ouvir mais, quando a pessoa fala de suas própria reprises. 

Agora, quando conheço alguém e gosto, também quero repetir a dose. Aí, falo das minhas reprises. Quero mesmo é aproveitar o tempo. Estender esse encontro, ao máximo. Com isso, me redescubro um pouco também no outro, na leitura inusitada das reprises, e das não reprises. No fim, se isso dá certo, quero um repeteco. Afinal, o segredo de uma boa conversa é ser generoso. 

Mas fazer uma pessoa virar reprise é algo que vai ficando raro hoje em dia. Nem sempre dá certo, porque ninguém vê e sente exatamente o mesmo que você. Dizem que isso se deve à falta de tempo. Ou ainda às redes sociais. Ou ambas, responsáveis pelo individualismo exacerbado e por uma autopromoção ferrenha. Também já ouvi dizer que ter tempo para alguém é artigo cada vez mais raro. Mas como acho que a mesquinhez e a ingratidão sempre grassou por aí no mundo, não me surpreendo com essas afirmações. Recentemente, conheci uma pessoa que me surpreendeu dizendo empolgada muitas coisas sobre uma viagem sua a um evento político em Brasília. Puro deslumbramento. Diante disso, minhas reprises talvez não fossem tão interessantes como os discursos vazios, os acordos e reuniões à surdina, o aperto de mão de adversários históricos, o lobby (esse novo nome para o conchavo). Tentei, mas não deu liga nem reprise. Fiquei triste. No entanto, há de se ter ainda esperança no coração, sabe?

Lembro de meu primo, Zé Carlos. Quando a gente era moleque, no Estreito, ele não aguentava minhas sessões de leituras torturantes, meus comentários sobre livros de que ele não gostava nem um pouco. Obrigado, Zeca, pela paciência e pelo ouvido amigo. Mas, até hoje, tratamo-nos com aquela ternura que somente os meninos de boa infância têm ("- Ô, seu caprino!"; "- Fala, cabeçudo!"). Agora moramos um pouco longe. Chega a notícia de que ele quer rever a mim e à família, agora um pouco maior. E meu filho adora aquele carrinho velho e gasto, ao invés dos outros, novos.

Reencontros são boas reprises.

Um comentário:

Orlando disse...

Reprises, reencontros, tudo a ver de bom. Passado, presente e futuro, o tempo enfim, todos criações humanas, segundo a neurociência. Gui, tenho certeza de que o Zeca ainda gostaria de ouvir suas histórias.