segunda-feira, 13 de março de 2017

Texto importante de José Castello

Braga de binóculo
José Castello
A literatura pode servir de antídoto para um mal que contamina nosso mundo: a rigidez. Ideias sólidas demais tendem à insensibilidade e à indiferença, tendem ao esvaziamento e à repetição. Tendem ao terror. Mundo técnico, de números, de planilhas, balancetes e manuais, mundo fascinado pela exatidão e pela perfeição, nosso mundo perde, aceleradamente, o gosto pelo relativo que, afinal, é não só o que tempera a existência, mas também o que a torna possível. Perde o gosto pela sutileza. A relatividade acentua os contrastes e confere gosto à vida. Torna-a diversa. Ela é o sal do mundo.
Uma pesquisa para um projeto de Selma Caetano a respeito das relações intensas entre Rubem Braga e o Rio de Janeiro me leva a uma bela crônica, de julho de 1958. Falo de “O gavião”, um dos destaques de “Ai de ti, Copacabana”. Uma reflexão sutil a respeito do peso do relativo em nossa existência. Do peso da diferença. É uma história simples. Cena que o cronista, com paciência e resignação, observa à distância. Um gavião ameaça uma pomba. Em um reflexo, Braga logo toma partido da pequena ave. Pouco depois, porém, ele se detém para uma reflexão mais minuciosa, que o conduz a uma postura paradoxal. Pode também tomar partido do gavião _ e, mais grave ainda, pode entender o impulso que move seu caçador.
Escreve Braga, no trecho que me interessa aqui: “Não tomarei partido; admiro a túrgida inocência das pombas e também o lance magnífico em que o gavião se despenca sobre uma delas. Comer pombas é, como diria Saint-Éxupery, ‘a verdade do gavião’, mas matar um gavão no ar com um belo tiro pode também ser a verdade do caçador”. Prefere a prudência. Prefere a sabedoria de acolher o que não suporta, o que não é seu. Prefere acatar a diferença.
Trecho incômodo e sobretudo perigoso, já que, aos apressados, pode parecer que o cronista defende não só a violência gratuita, como a mais odiosa violência dos homens contra os animais. Não é isso que faz. Ele não faz, ele mostra _ que, para cada passo, há sempre um argumento possível e há sempre um contrário, ainda que o outro lado o veja como indefensável. Questão difícil _ questão ética, que fala de princípios mas também de necessidades. Todo esse terreno pantanoso onde nos afogamos, mas no qual a literatura entra não para resolver isso ou aquilo, não para tomar partido (não existe literatura partidária), mas para iluminar o que não suportamos ver. Suportar a ver, na verdade, o que? Ver a diferença e celebrá-la.
Braga me remete a Rafael Argullol que, em seu “Breviário da aurora”, define a relatividade assim: “Todos os centros são periferia”. É uma ideia igualmente bela, mas perigosa, ou perigosa porque bela. Pois com ela despencam todas as escalas de valores, diluem-se todos os centros, o mundo se torna apenas borda. Onde pisar? Mas ela se torna uma ideia sábia se nos ajudar a ver que também os valores (nossos valores) são relativos. Não passam de ideias frágeis. São apenas um centro, entre vários centros. Não para desprezá-los, ou ao contrário para acatá-los com desgosto e submissão, mas exatamente para isso: para relativizá-los. Enfim: para suavizar o mundo e desprezar as bocas com dentes arreganhados que proliferam por toda parte.
Enquanto leio Braga, “tenho fé” em Braga. Mas isso não me impede de, logo em seguida, fechar “Ai de ti, Copacabana” para abrir um livro de crônicas de Clarice Lispector, ou de Nelson Rodrigues, para lê-los com a mesma “fé”. É tudo uma questão de liberdade interior. Uma questão de saber exercer a liberdade, de aproveitar-se da grande abertura que a liberdade promove no mundo. Sem o coração livre para acatar, mas também para renegar, ninguém se aproxima verdadeiramente da literatura. Esta é a única exigência: não ter as mãos atadas. Estar sempre pronto para olhar para o outro lado.

O texto acima, de José Castello , foi publicado originalmente no blog do autor : http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/

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